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Obra de composição
Por Ana Kelly Borba da Silva Brustolin
Ana acordou. Saiu de fininho da cama para
acordar o marido e a filha, ainda bebê, que dormiam... Levantou-se, foi ao
banheiro e evitou o espelho. Afinal, suas olheiras já estavam tão marcadas que
nem a maquiagem solucionava... Campeou em seu guarda-roupa uma peça de roupa
que combinaria com seu colar vermelho – resistência. Boa opção para este dia e
esta mulher: mãe e professora. Antes de tomar seu café, sua filha acorda para
mamar... O marido segue até a cozinha, num gesto de cumplicidade para
agilizarem-se.
Nesse ínterim, Aurora se preparava para ir
embora do hospital, após uma noite corrida de plantão na emergência. Enquanto
ela se despia das variadas peças obrigatórias contra a transmissão do coronavírus
– macacão, óculos, touca, máscaras... – o cheiro do café passado lhe sinalizava
um bom olfato e contrastava com o cheiro do suor de seus colegas de trabalho,
indicando a chegada de novos pacientes em estado grave.
Já Elisa arrumava-se tranquilamente (e até,
preguiçosamente) para ir à escola assistir às aulas presenciais – novidade do
momento. “Opa, cadê a máscara,
mãe? Não estou achando”...
Ana deu de mamar e, enfim, tomou sua xícara de
café com leite e açúcar, pão e fruta, podendo dialogar, rapidamente, com o
marido. Não sei se mencionara, mas era um lindo dia de março (8 de março de
2021) e, apesar das máscaras, já se podia sentir o frescor do outono se
aproximando... Ana saiu para lecionar, levando sua bolsa carregada, como
sempre... Em sua bolsa havia livros, canetas, penal, batom, perfume, jaleco e
máscaras (a cirúrgica e a face shield), além da máscara reserva e o megafone
para preservar o corpo físico e a garganta – se é que se pode chamar isso de
“preservar”!
Aurora saiu exausta do trabalho, dirigiu-se ao
seu carro e a primeira coisa com a qual se deparou foi com o Carro dos
Bombeiros trazendo mais uma paciente. De longe acenou para a Tenente Müller,
sua já conhecida colega. A Tenente disse-lhe: mais uma! Dessa vez, mulher.
Jovem e saudável. Mãe de duas crianças. Ambas fitaram-se num sinal de
solidariedade feminina.
Elisa chegara na escola. Manteve distância dos
colegas e sentou-se para ter as aulas... O tempo das aulas era outro. Modo
híbrido. Conteúdos e colegas
organizados (sem fluidez) pelas conexões de um
novo normal e compartilhados pelas ferramentas tecnológicas. Ivone, a
supervisora escolar, adentrou na sala de aula para verificar se estava tudo
bem. Ela não teve filhos. Funcionária assídua e exemplar seguia a linha “conte
comigo”, em oposição à Carla – mãe de dois filhos – cozinheira da cantina, sem
trabalho há meses...
Ana deu suas aulas. Aurora foi para sua casa
descansar. Elisa estudou. Ivone continuou seu trabalho. Carla estava fazendo
seus quitutes para vender e ganhar “um extra”!
O relógio soou: meio dia e meia. Todas essas
mulheres atarefadas e famintas, por comida e por vida. Nesse dia lindo, elas
saem para almoçar e dar prosseguimento às suas vidas, e se entrecruzam (sem se
conhecerem) pela rua com artesãs reunidas no centrinho da Lagoa da Conceição,
em Florianópolis. Entre as mulheres artesãs e tecelãs, estava dona Terezinha,
que tecia flores individuais para se tornarem um jogo de porta-copos, e ela
falava para duas crianças, um casal – que pareciam seus netos: “o grande desafio
da arte é o de contribuir para a construção crítica da realidade por meio da
liberdade pessoal”. Olhem! Cada flor, cada detalhe, cada ponto! E continua...
Precisamos permitir ao indivíduo desenvolver seu próprio potencial humano e
criativo, diminuindo o distanciamento que existe entre a arte e a vida. O
coletivo, meus queridos, é a união de pessoas para a produção em torno de um
tema comum. Enquanto eu teço as flores, Maria está tecendo o trilho de mesa e
Jane os guardanapos.
Todas silenciam. Cada qual a 1,5 m de distância
se emociona à sua maneira. E os olhos marejados não negaram: são humanas,
sensíveis e despertas. Naquele momento, o dia ficou diferente. Mais leve,
talvez? Mais humano e solidário.
Cada uma dessas mulheres trocou a celeridade
imposta por atenção como resposta. Ana trocou o suco que tomaria por
porta-guardanapos. Aurora trocou os minutos de atraso para buscar seu cachorro
no pet pelo trilho que ainda não tinha em seu lar. Elisa trocou as economias
que guardara para um jogo desses on-line pelos guardanapos que levou à sua mãe.
Ivone trocou sua praticidade pela flor em crochê que enfeitaria sua sala e
Carla trocou uma parte do que ganhara com seus quitutes pelo avental que a
vestiria ainda mais bela em seu ofício e em sua arte.
Não menos importante, uma mulher que por ali
andava observando, fotografou a cena, registrando o momento e paralisando o
tempo. Fotografou a essência, a individualidade e a arte que
cada uma dessas mulheres carregava dentre de si. A fotógrafa fez foto com arte
ou arte com foto, assim como discorreu a dona Terezinha. E seguiu... na beira
da lagoa, próxima ao restaurante Oliveira, debruçando-se sobre a ponte e
respirando suavemente – embora estivesse abafada pela máscara.